quarta-feira, 8 de agosto de 2012

CAÇADORES DE UNICÓRNIO - III

II) Mesmo corrompida e apesar da corrupção do monarca, preferível, conquanto mal menor

Coroa de Eugênia, Imperatriz Consorte da França
Eis-nos novamente aqui para trazer aos leitores mais um artigo desta série que pretende ser uma breve réplica, e um pequeno esclarecimento, de questões que ultimamente se fizeram em voga pelas acusações que sofreram nossos príncipes. Não pretende é lógico esgotar o tema e ser completamente definitiva.
Tratamos já no primeiro artigo sobre a autoridade de Santo Tomás e sobre a necessidade de crer, ou ao menos consentir, que a monarquia seja a melhor forma de governo, não tratamos ainda se é errado admitir outra forma de governo como legítima. Trataremos antes da questão levantada pelos acusadores, que é a questão de haver mal menor em política, ou seja, se entre duas opções más, possamos escolher a que acarreta menos males, seja a de um candidato à postos de governo, seja quanto à forma de governo, ou forma de Estado em si. Ora, dizem eles que um mal menor é sempre mal, e portanto seria imoral escolhê-lo.
Devo, no entanto, notar que toda ufania psitacídea com a qual eles dizem ser meros repetidores de Santo Tomás se acaba aqui. Explico. Chama-se Mestre Principal o que possui a ciência perfeita, nos dando a conhecer a verdade pela evidência e pela demonstração, e também é claro, pelo peso de sua própria autoridade. Assim sendo, um mero repetidor não tem autoridade própria, não pode atrever-se a interpretar ou desenvolver a doutrina do mestre principal, já um Mestre Auxiliar, participa, ainda que imperfeitamente da ciência e doutrina do Mestre Principal e pode, portanto, interpretar e desenvolver até certo grau, dependente e participado e até impor certas sentenças pelo peso da própria autoridade. Assim, em filosofia, Santo Tomás é um mestre principal, já Suarez ou Cayetano são mestres auxiliares. (1) Nossos adversários se pretendem repetidores, mas ao soltar a tremenda asneira sobre a inexistência de mal menor em política, desviam-se daquele que pretendem repetir, e impõe por autoridade própria (o que não têm) uma opinião pessoal, disfarçando-se assim em mestres auxiliares.
Mas vamos diretamente ao ponto, já que ao acusador cabe o ônus da prova, e repitamos aqui o que nos disse realmente Santo Tomás em o Governo do Príncipe:

“Assim, porém, como é ótimo o regime do rei, também é péssimo o governo do tirano. Opõe-se à politia a democracia, sendo ambas, como do exposto se patenteia, governo que por muitos se exerce; à aristocracia a oligarquia, exercendo-se ambas por poucos; e o reino à tirania, exercendo-os ambos um só. Que, porém, é o reino o melhor regime, mostrou-se antes. Se, pois, ao ótimo se opõe o péssimo, força é que a tirania seja o pior. Além disso: a virtude unida é mais eficaz para realizar o efeito, do que a dispersa ou dividida. Em verdade, muitos simultaneamente congregados arrastam o que divididamente por partes não poderia ser arrastado por cada um isoladamente. Assim como é mais útil seja o mais possivelmente una a virtude que opera para o bem, a fim de ser mais poderosa para a sua operação, da mesma forma é ela mais nociva do que dividida, se, una, opera o mal. Opera em dano da multidão a força dum chefe injusto, quando desvia somente para seu próprio bem o bem comum da multidão. Conseqüentemente, assim como, num governo justo, tanto mais útil é ele, quanto mais una for a chefia, de sorte que é o reino melhor que a aristocracia e esta que a politia; também, ao inverso, se dará no governo injusto, que, quanto mais una for a chefia, tanto mais nocivo há de ele ser. Assim, mais nociva é a tirania que a oligarquia, e esta do que a democracia.
Mais: o que faz injusto um governo é o tratar-se, nele, do bem particular do governante, com menosprezo do bem comum da multidão. Logo, quanto mais se afasta do bem comum, tanto mais injusto é o regime; ora, mais se afasta do bem comum a oligarquia, na qual se busca o bem de uns poucos, do que na democracia, na qual se procura o de muitos; e ainda mais se aparta do bem comum na tirania, em que se busca somente o bem de um; porquanto da totalidade é mais próximo o muito que o pouco, e o pouco que um só. É, pois, o governo do tirano o mais injusto. Semelhantemente se tornará evidente a quem considerar a ordem da divina providência, que tudo dispõe pelo melhor. Pois, nas coisas, o bem provém duma única causa perfeita, congregando-se tudo aquilo que pode coadjuvar ao bem, enquanto o mal, em particular, provém dos defeitos particulares. Assim, não há beleza no corpo, a não ser que todos os membros estejam dispostos convenientemente; apresente-se inconvenientemente qualquer membro, e ter-se-á a feiura  E assim é que, por modos vários, procede a feiura de muitas causas, enquanto a beleza por um só modo e de uma só causa perfeita. E assim se dá com todos os bens e males, como que por providência de Deus, a fim de que o bem proveniente de uma só causa seja mais forte, entretanto, o mal, proveniente de muitas causas, seja mais fraco. Releva, pois, que o governo justo seja de um só, para ser mais forte. Porque, caso se afaste da justiça, mais convém seja de muitos, que entre si se atrapalhem, para ser mais fraco. Entre os regimes injustos é, portanto, o mais suportável a democracia, e o pior, a tirania.
Isso se evidencia sobremaneira, considerando-se os males que dos tiranos provêm, visto como, quando o tirano, desprezando o bem comum, vai no encalço do particular, segue-se que agrave de muitas formas os súditos, conforme as diversas paixões que o dominem, levando a cobiçar determinados bens. O que é possuído da paixão da cupidez rouba os bens dos súditos; daí Salomão (Pr 29, 4): “O rei justo eleva sua terra; destrói-a o homem avaro”. Se, porém, o subjuga a paixão da ira, por nada derrama sangue, donde o ser dito por Ezequiel (22, 27): “Os seus príncipes são, no seu meio, como lobos que arrebatam a presa para derramar sangue”. Por isso admoesta o sábio (Eclo. 9, 18) que se deve fugir de tal regime, dizendo: “Fica longe do homem que tem o poder de matar”; visto que não por justiça, senão pela força, mata por desregramento da vontade. Dessa forma, nenhuma segurança haverá, senão que serão incertas todas as coisas, uma vez que se afasta o direito, não podendo haver firmeza no que quer que seja, desregramento estranho. Nem se fazem agravos aos súditos só nas coisas corporais, mas ainda se lhes impedem as espirituais, já que o que prefere mandar a beneficiar impede todo o proveito dos súditos, suspeitando ser prejuízo ao seu domínio iníquo toda excelência dos súditos. Porque aos tiranos são mais suspeitos os bons que os maus, e sempre lhes é de temer a alheia virtude. Eis a razão pela qual pretendem os ditos tiranos que os seus súditos não se tornem virtuosos nem adquiram o espírito de magnanimidade que lhes faça intolerável a sua iníqua dominação. Pretendem também que não se firme entre os súditos a aliança da amizade e gozem reciprocamente do benefício da paz, de modo que, não confiando um no outro, nada possam tramar contra o senhorio deles. Com esse fim, semeiam discórdias entre os súditos, alimentam-nas, se nascem, proíbem o que promove o entendimento entre os homens, como conúbios, festins e outras coisas do gênero, pelas quais costuma gerar-se a familiaridade e a confiança entre eles. Diligenciam, outrossim, para que não se façam poderosos ou ricos, porquanto, suspeitando dos súditos segundo a consciência da sua própria malícia, assim como eles, tiranos, usam do seu poder e riquezas para prejudicar, igualmente temem que poder e riquezas dos súditos se lhes tornem nocivos. Daí o dizer-se do tirano também em Jó (15,21): “O ruído do terror lhe está sempre ao ouvido, e, embora haja paz (isto é, sem ninguém intentar mal contra ele), sempre imagina ciladas”.
Resulta disso que – quando os dirigentes, que deveriam induzir os súditos às virtudes, nefandamente lhas detestam e vedam-nas o quanto podem – poucos virtuosos há sob os tiranos. Pois, segundo a sentença de Aristóteles (Ética a Nicômaco, I, 3, 1095 b 28-30), os varões fortes encontram-se junto daqueles que honram os mais fortes, e diz Túlio (Cícero, Tusculanas, I, 2; cf. Agostinho, Cidade de Deus, V, 13): “Ficam sempre rasteiras e pouco vigoram as coisas que todos rebaixam”. É também natural degenerem para um caráter servil e se façam pusilânimes para toda obra viril e esforçada homens educados sob o temor: o que experimentalmente se manifesta nos países que por muito tempo estiveram sob um tirano. Por isso é que diz o Apóstolo (Col 3,21): “Pais, não posto estar à mercê duma vontade estranha, para não dizer do provoqueis à indignação vossos filhos, para que não se tornem mesquinhos de ânimo”. E Salomão (Pr 23,12), considerando esses danos provenientes da tirania, diz: “Reinando os ímpios, fazem-se ruínas de homens”, pois que, pela maldade dos tiranos, os governados desfalecem na perfeição das virtudes; e volta a dizer (Ibid. 29,2): “Quando os ímpios assumem o governo, geme o povo como que reduzido à servidão”; e outra vez (28,28): “Quando se levantam dos ímpios, ocultam-se os
homens”, para fugirem à crueldade dos tiranos. Nem é para admirar, por isso, que nada difere da fera o homem que governa sem razão e sim segundo o desregramento da sua alma, razão de dizer Salomão (Pr 28,15): “Leão enfurecido e urso faminto é um príncipe ímpio sobre um povo pobre”, motivo por que dos tiranos se esconderem os homens como de feras cruéis, parecendo ser a mesma coisa submeter-se a um tirano que prostrar-se ante uma fera bravia.” (2)

Considerando então que uma monarquia liberal é equiparável à uma tirania, justamente porque não há tirano pior que um liberal, e que isso se dá justamente porque o liberalismo é um desvio do bem comum, ao mesmo tempo em que um monarca liberal ao invés de excitar os súditos à virtude, com seu exemplo vedam o acesso à ela, exatamente como disse acima Santo Tomás do tirano. Agora, resta saber o que é pior, uma monarquia corrompida, uma aristocracia corrompida, ou uma democracia (divergem os tradutores no termo, que nessa versão é politia), e se dentre tais regimes corruptos poderíamos escolher sem culpa o que é menos mal. Para isso vamos ao texto de Santo Tomás:

“Como, todavia, entre dois, dos quais, tanto de um como de outro, está iminente o perigo, FAZ-SE MISTER ESCOLHER; cumpre que, com muito mais preferência, SE ESCOLHA AQUELE DO QUAL DERIVA MENOR MAL. Ora, da MONARQUIA QUE EM TIRANIA SE CONVERTE, SEGUE-SE MENOR MAL DO QUE DO GOVERNO DE MUITOS NOBRES, AO SE CORROMPER. Verdadeiramente, a dissensão que, o mais das vezes, deriva do governo de muitos, contraria o bem da paz, que é o princípio na multidão social, bem esse que pela tirania não se perde, mas somente se impedem alguns dos bens dos homens particulares, salvo se há excesso de tirania, que se agrave contra toda a comunidade. Portanto, há de se decidir de preferência pelo governo de um só do que pelo de muitos, se bem que de ambos decorram perigos.
Mais ainda: parece se deva mais fugir daquilo de que, com mais freqüência, podem advir grandes perigos; ora, seguem-se do governo de muitos os maiores perigos da multidão, mais amiúde do que do governo de um só, porque mais vezes sucede decair da intenção do bem comum algum dos muitos, do que o governante único. Desvie-se, com efeito, da intenção do bem comum qualquer um dos muitos que presidem, e ameaça de perigo de dissensão a multidão dos súditos, porque, discordando os príncipes, segue-se em conseqüência a discórdia na multidão. E, se um só preside, olha, as mais das vezes, pelo bem comum; ou, se se apartar da intenção desse bem, não se segue imediatamente que pretenda a opressão total dos súditos, o que é o excesso da tirania e ocupa o grau máximo da malignidade do governo, como acima vai demonstrado. Por isso, são mais de evitar os perigos provenientes do governo de muitos, que os do governo de um só.
Além disso, não menos, senão muito mais freqüente é transformar-se em tirania o governo de muitos que o de um só. Em verdade, nascida a dissensão pelo governo múltiplo, amiúde sucede superar um aos mais e usurpar para si somente o domínio da multidão, o que claramente se pode ver no acontecido com o andar do tempo. Pois, terminou em tirania quase todo regime de muitos, como se patenteia maximamente na república romana, a qual, como tivesse sido longo tempo administrada por muitos magistrados, despertando muitos ódios, dissensões e guerras civis, veio a cair sob os mais cruéis tiranos. E, se alguém considerar diligentemente, em todo o mundo, os fatos passados e os que ora se dão, há de achar ter havido mais tiranos nas terras governadas por muitos, do que nas governadas por um só. Se, portanto, a realeza, que é o melhor governo de todos, pareça dever evitar-se por causa da tirania; e se a tirania costuma dar-se não menos, porém mais, no governo de muitos que no de um só, resta simplesmente ser de mais conveniência viver sob um rei, do que sob o governo de muitos.
Conclusão: que o governo de um só, absolutamente, é o melhor de que maneira deve a multidão haver-se a respeito dele, visto como se lhe deve tirar a ocasião de tiranizar e, ainda quando o faça, há de tolerar-se para evitar maior mal.”(3)

Para facilitar nosso entendimento nessa questão citemos também a Garrigou-Lagrange:

“‘Segue-se, diz Santo Tomás (cap. III), que a monarquia é o melhor dos governos’, o mais uno, o mais durável, aquele que é mais forte para promover o bem comum; ‘a monarquia, diz ele ibid., é melhor que o regime aristocrático, e este, melhor que a república’. A mesma doutrina é conservada na Suma Teológica onde é dito, Ia. q. 103 a. 3, sobre o governo do universo: ‘Optima gubernatio est quae fit per unum’. O melhor governo é o de um só. [...]
É verdade, como é dito na presente obra (Cap. III), que, em virtude do princípio *optimi corruptio pessima* [a corrupção do melhor é a pior], a tirania é pior do que a oligarquia (que é a degeneração do poder aristocrático), e a oligarquia é pior do que a democracia (que, na terminologia de Santo Tomás, é a alteração ou corrupção da república).
Os males da tirania não são menos bem notados (Cap. III), tanto na ordem espiritual como na ordem temporal: [...]
Santo Tomás acrescenta, no entanto (cap. V), que se o governo de um só, tornando-se tirânico, todavia não se encarniçar, sem medida alguma, contra a multidão inteira, ele é ainda preferível aos demais. O governo coletivo, a partir do momento em que a discórdia nele se introduz, transforma-se quiçá mais frequentemente, com efeito, em opressão. Donde resulta, portanto, que é mais vantajoso viver sob um rei. É o melhor regime. Reencontramos a mesma conclusão na Suma Contra os Gentios, livro IV, cap. 76, n° 4, a propósito do governo da Igreja.””(4)

Temos então, bem fundamentado e comprovado, que segundo Santo Tomás, em questão política, não existe imoralidade em escolher a opção da qual decorrem menos males, e que mesmo uma monarquia desviada de seus fins é preferível à outro regime também desviado de seus fins.


(1) R.P. ÁLVARO CALDERÓN, “La Lámpara bajo el celemín,” Rio Reconquista, Buenos Aires, 2009, pág. 63-64
(2) SANTO TOMÁS DE AQUINO, “Governo do Príncipe,” Lib. III, Cap. IV, 10-13
(3) SANTO TOMÁS DE AQUINO, "Governo do Príncipe,” Lib. III, Cap. VI, 15.16.
(4) GARRIGOU-LAGRANGE, Reginald, “Prefácio ao Governo do Príncipe”.

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